Em 2022, o Fatal Blog trouxe um artigo que explicou o porquê da celebração do Dia da Visibilidade Trans, sempre no dia 29 de janeiro. O tema, superimportante, leva qualquer um a refletir sobre a necessidade de convivermos numa sociedade capaz de promover a inclusão e respeito.
Um ano depois, o blog volta a produzir conteúdo sobre o Dia da Visibilidade Trans. Mas, desta vez, conversando com Morena Lovateli, acompanhante, mulher trans e influenciadora do Fatal Model.
E vale muito a pena conferir! Nesta conversa incrível, a profissional compartilhou sua visão sobre a aceitação da sociedade atual com pessoas trans, deu dicas de séries sobre o assunto e contou uma história – jamais revelada publicamente – sobre o atendimento mais marcante que já realizou. Está realmente incrível e inspirador!
Fatal Model: O Dia Nacional da Visibilidade Trans é comemorado desde 2004. Olhando para trás e comparando com o atual momento, nossa sociedade evoluiu em relação a esta pauta? Vivemos numa sociedade menos preconceituosa em relação à que tínhamos há quase 20 anos?
Morena Lovateli: Acredito que sim. A sociedade teve uma leve evolução em relação a essas pautas. Hoje temos o direito de retificar nosso nome e gênero em nossos registros de nascimento, que antes só era possível abrindo processo, o que poderia levar anos. Hoje em dia, basta ir no cartório e pedir a retificação de nome e gênero. Um pouco demorado e burocrático, mas em até três meses já conseguimos estar com nossa certidão nova, e também temos a lei ao nosso lado, como a lei Maria da Penha, que pode ser aplicada na proteção de mulheres transexuais, como também a injúria racial. Depois de muita luta, essas foram algumas conquistas que tivemos ao longo de quase 20 anos, mas acredito que a sociedade seja muito preconceituosa ainda pela parte machista e transfóbica, o que não tira nosso país da lista de países aonde mais se mata mulheres trans e travestis. Ao mesmo tempo, é onde mais se consome conteúdos pornográficos… Parece estranho, mas não saímos da barra de pesquisa dos principais sites pornôs aqui do Brasil. As Mari (maricona, termo também empregado para fazer referência a homossexuais que não revelam sua identidade homossexual) são tão injustas que ao invés de comprar nossos conteúdos, já que estão nos matando, preferem ir assistir de graça em sites pornográficos. As travestis não têm um dia de paz.
Quais atitudes a sociedade deveria ter para que uma grande mudança acontecesse e tivéssemos, assim, um cenário de mais inclusão e respeito?
Eu lembro de alguém me falando que às vezes não temos espaços para ocupar dentro da sociedade. E às vezes a gente se molda para caber dentro deles. Podemos criar nossos próprios espaços. E a gente tenta fazer isso, mas sempre somos reprimidos. Sabe quando você tá superfeliz e vem alguém pra destruir essa felicidade? E essa felicidade que eu digo é estar feliz com a gente mesmo, se sentir bem com nossa imagem, nosso jeitinho. Mas quando saímos na rua a gente é agredida verbalmente, agredida com olhares e às vezes agredida até fisicamente. Então eu acredito que a sociedade deve parar para pensar uma única coisa: se ponha sempre no lugar do próximo. O mundo é muito grande para querer padronizar o ser humano. Somos todos diferentes, cada um com sua singularidade. A principal atitude seria o respeito mesmo, de não ficar mexendo, não ficar julgando com os olhares e, principalmente, respeitar nossa identidade de gênero. Somos mulheres! Queremos ser vistas como mulheres, mas infelizmente somos marginalizadas. Acredito também que se houvesse mais leis que nos ajudassem a adquirir o básico, que é escola, emprego e moradia, um bom atendimento em questão de saúde… Por exemplo, terapia hormonal: muitas trans e travestis fazem o uso sem ter ido ao médico. Eu mesma fui uma e sei que isso me trouxe algumas alterações na saúde, boas e ruins. Ver mais pessoas trans e travestis em comercias, em novelas, em estabelecimentos… Nós existimos e estamos aí. Às vezes saindo só à noite pra sair despercebida e não sofrer nenhuma transfobia. Acredito que temos que ser vistas não só dia 29 de janeiro, mas todos os dias do ano para que as pessoas nos vejam e que também nos respeitem. Eu não vivo para ser “aceita”. Eu tenho o direito de respeito! Eu respeito para ser respeitada. Eu sempre pensei assim desde a escola: pra mim a sociedade tem que ser feita à base de respeito, mas infelizmente o ser humano tem muito o que aprender com essa palavra.
Existem pessoas trans que pedem conselhos a você por conta do medo de acabarem alvo de preconceito?
Acredito que alvo de preconceito não porque quem é uma mulher trans e travesti sabe muito bem o que é o preconceito. Sente isso desde de muito cedo porque nascemos assim. Eu mesma, por exemplo, lembro que desde pequena enfrento preconceitos da não aceitação. Sempre fui uma criança muito alegre, mas sempre sendo repreendida: “Não faz tal pose, isso é feminino”, “não brinca com bonecas”, “não dança assim”… Eu nunca podia ser quem eu realmente queria ser. E conforme fui crescendo cada vez ficavam piores essas restrições, não podendo vir à tona o que eu era por dentro. Lembro que quando veio a pré-adolescência sempre tinha aquilo: “Fala que nem homem, homem fala grosso”. Depois de um tempo eu ouvia: “Fala mais alto, não tá dando pra te escutar.” Comecei a ter vergonha de falar, e as pessoas ao ouvirem minha voz vinham questionar se era de homem ou de mulher. Isso são pequenas coisas comparadas a tudo que a gente passa, então acho que já somos calejadas em relação ao preconceito. Sabemos que vamos enfrentar isso ao sair de nossas casas e adentrando à sociedade ou até mesmo dentro de nossas próprias casas. Mas acredito que o pior é logo no início da transição, quando a gente quer a qualquer custo ter feições femininas no nosso corpo, no nosso rosto, porque por dentro a gente já é uma bela mulher. Sabemos desde cedo a nos arrumar, nos maquiar e ter uma postura feminina muito forte, então com isso eu recebo nas minhas redes sociais algumas mensagens de meninas trans e travestis perguntando por onde começar, qual hormônio tomar… É uma pressão muito forte a todo tempo, de todos os lados, para que nos percebam mulheres. Eu, claro, sempre as indico procurar um profissional na área de hormônios, mas sei também que elas não vão porque não temos fácil acesso na área dos endocrinologistas. Mas fico muito feliz quando recebo essas mensagens. Gosto muito de conversar e passar uma mensagem de carinho e mostrar que não estamos sozinhas, que juntas somos muito mais fortes e que não precisamos de hormônios para ser mulheres, ter cabelos longos e seios fartos ou ter um corpo violão. Temos que nos amar do jeitinho que somos e, se for o caso mudar nosso corpo, tudo bem, mas de uma forma saudável na qual não agrida nosso corpo, nossa mente e nossa alma.
Qual seu conselho para as pessoas que têm medo de serem quem elas realmente são?
Pessoas assim foram muito reprimidas, nunca podendo ser feliz mostrando sua personalidade, sendo excluídas pelo jeitinho que são. O conselho que eu dou é seguirem o caminho da felicidade. Não é fácil, não. A gente enfrenta muita coisa quando sai da nossa zona de conforto pra viver em um mundo cheio de preconceitos, mas eu garanto que não tem nada melhor do que tu poderes rir alto, sair com a roupa que quiser, com a maquiagem que quiser, ser livre de rótulos e padrões impostos à gente. E não se sinta sozinha, não tenha vergonha de pedir ajuda, de pedir conselhos ou apenas conversar com pessoas que te inspiram. Estude sempre, busque conhecimento, entenda quem você realmente é. Converse com você no espelho e se ame. Deus não comete erros. Ele nos fez perfeitas. Tenha sua independência financeira e corra atrás dos teus sonhos e nunca pare de sonhar. Deus só dá asas àqueles que não têm medo de voar, então não tenha medo de ser quem você é. Seja a protagonista da sua própria novela que se chama vida!
Você recomenda algum filme, documentário, livro ou influencer que nos ajude a refletir sobre respeito à identidade de gênero?
Sim! Tenho duas séries que marcaram muito minha vida e que fez refletir muitas coisas relacionadas à minha identidade de gênero. A primeira é “Pose”. Eu indico muito e tenho certeza que muitos já assistiram a essa série. Me representa muito! Têm protagonistas travestis e mulheres trans que fazem o papel e que também são na vida real. Acontece em Nova York, no final da década de 1980. Mj Rodriguez é atriz e cantora e interpretou Blanca Rodriguez em Pose. Ela se tornou a primeira pessoa trans indicada ao Emmy Award na categoria de Melhor Atriz em 2021. Blanca abrigava jovens LGBT que foram expulsas de suas casas.
A outra indicação é uma série que me fez chorar, me fez rir… Uma mistura de emoções porque foi a primeira série que vi mostrarem uma transição do início ao fim. Esta série é “La Veneno” e conta a história da estudante de jornalismo Valeria (Lola Rodríguez, uma mulher trans), que conhece e cria um vínculo forte com seu ídolo, a incomparável ícone trans Cristina “La Veneno” Ortiz Rodríguez (interpretada por Isabel Torres, mulher trans). Essa série retrata muito bem a prostituição nas ruas, o início de transição de mulheres trans, a não aceitação da família. É uma série que eu recomendo demais, mas preparem o coração porque têm cenas bem fortes.
E por fim eu quero muito indicar uma cantora e influencer trans, a Jotta A. Eu acompanho desde sempre, quando cantava no programa Raul Gil, e ela está lançando umas músicas com pegadas de estilo anos 80 com Rhb e as letras são superautênticas.
Como você definiria Morena Lovateli atualmente?
Eu costumo dizer que a Morena Lovateli é meu alter ego. Assim como as divas pop têm, como a minha deusa Lady Gaga, quando eu passo um batom eu já sinto a Morena Lovateli. Isso me dá força pra encarar o dia a dia de trabalho e as pessoas que eu costumo atender. Então hoje em dia eu me sinto confiante, sinto que estou no caminho certo, fazendo o que eu tenho vocação pra fazer e, querendo ou não, eu mudo vidas e pensamentos porque tenho uma troca muito boa com meus clientes. Isso define quem eu sou: uma pessoa muito educada, que não perde tempo com energias ruins e que sonha alto e sabe que é capaz de chegar lá vivendo a vida que eu levo. Se fosse pra me definir em uma palavra seria persistência porque eu nunca desisto do que eu quero.
Você possui mais de 5 anos de experiência como acompanhante. Nota uma procura maior por pessoas trans e um respeito maior ultimamente?
Sim. Principalmente contato pelo WhatsApp. Antes era mais comum encontrar uma mulher trans ou travesti nas ruas. Eu acho que depois da pandemia teve uma procura muito maior, com o aumento de números em anúncios, então hoje em dia é mais fácil ter um contato com uma mulher trans ou travesti pelo anúncio. Mas também aumentaram as pessoas que não valorizam nossos serviços ou, até mesmo, os que querem só fazer a gente perder tempo, sendo mal educados na abordagem pelo WhatsApp. O respeito vem melhorando e evoluindo com o tempo, mas infelizmente temos que tomar muito cuidado ainda, e ficar atentas com o estilo de clientes que nos procuram.
Qual tipo de fantasia ou fetiche é mais solicitado a você?
A maioria dos meus clientes, se não todos, me procuram porque sou ativa também, mas nem sempre foi assim. Logo quando comecei eu era mais passiva, mas não tinha uma procura tão grande, então alguns clientes me aconselharam a mostrar em meus anúncios um lado mais ativa. Eu fiz isso e tive uma procura muito maior. Estudei isso dentro de mim pra ver se eu ia ficar tranquila fazendo a linha ativa e, então, eu comecei a trabalhar só sendo ativa. O que mais buscam é isso e, às vezes, inversões de papéis. Às vezes, dominadora, mas sempre com aquilo de ser muito feminina, mas também ativa. Também são muitos que pedem, e eu queria ter muito mais pra dar, a finalização, aquela boa gozada. Toda cliente que me procura quer assistir, seja ao vivo ou por videochamada. Eles pedem muito pra gozar, e não pode faltar.
Você tem na memória um atendimento mais marcante, do ponto de vista positivo? Poderia compartilhar com a gente como foi?
Gente, eu nunca contei isso, mas vou me abrir porque acho que foi bem legal o que aconteceu. Teve uma vez que eu atendi um cliente que já era quase um cliente fiel. Já havia atendido três vezes, isso no início da minha carreira. E lá no início também foi o início da minha transição, então eu tinha o cabelo bem curtinho e usava uma “lace”, uma peruca, né. E ali no atendimento, com a empolgação, ela se desprendeu da minha cabeça. Não chegou a cair, mas na hora eu parei tudo e fui no banheiro correndo pra ajeitar, né, poxa. No banheiro, eu só ria da desgraça. Então voltei já falando: “Ah, minha peruca soltou porque meu cabelo é curto, estou deixando crescer, mas já está tudo bem”. Eu sempre sendo sincera. Aí ele disse: “Vamos para a banheira relaxar”. (Risos). Eu não entrava na banheira por causa da lace, que molhava, ficava pesada… não dava pra molhar tudo. Aí ele disse: “Tira teu cabelo e entra, pode ficar à vontade, você é linda de qualquer jeito.” Me senti segura, tirei a lace, deixei pendurada secando e aproveitei uma boa banheira. Cheguei a atender ele depois sem lace, de cabelo curtinho. Ele me deixou supertranquila. Hoje em dia finalmente meu cabelo cresceu do jeitinho que eu sempre quis, mas isso me marcou de forma positiva.
Está em um relacionamento? Como vem sendo esta relação trabalho/relacionamento?
Eu tenho um relacionamento de quatro anos e nesses quatro anos a gente aprendeu muita coisa juntos. Passamos ciúmes juntos, mas hoje a gente tá indo pelo caminho certo, que é sempre conversar um com o outro, mostrar nosso ponto de vista sempre sendo sincero um com outro. Pra mim, casal é quando você escolhe viver a vida ao lado de outra pessoa, então você compartilha suas alegrias e tristezas com essa pessoa que seu coração escolheu para amar, sempre apoiando os sonhos. Temos sonhos de casal, mas também temos sonhos particulares porque são duas cabeças para pensar. Meu parceiro sempre me apoiou no meu trabalho, assim como eu também o apoio. Hoje em dia ambos trabalhamos no ramo adulto porque temos muitos sonhos para realizar. E como eu sei que tu vais estar lendo aqui, porque és meu maior fã, o nº 1, afirmo que vamos conseguir porque nos amamos muito, porque sempre enxergamos que somos profissionais do ramo adulto e sabemos separar o carnal do sentimental.
O que mais vem chamando sua atenção no Fatal Model atualmente?
A listagem virtual, que logo quando foi criada eu fiquei muito feliz por já atender também virtualmente. Essa listagem pode servir de ganha-pão para muitas pessoas que precisam de uma renda extra. O virtual chegou para facilitar muitas coisas, eu acredito que pode ser uma ponte forte para futuros clientes presenciais. No atendimento virtual, você pode se soltar mais, ter um contato melhor com o cliente pra saber o que ele realmente procura e também poder saber qual seu estilo de cliente. Eu acredito que muitas pessoas têm uma renda boa graças à listagem virtual.
Qual seu recado final para a comunidade trans?
Somos muito mais fortes unidas, então sem rivalidade trans! Vamos pegar a mão uma da outra e não soltar, vamos ser fortes e guerreiras para aumentar nossa expectativa de vida que hoje em dia é de 35 anos. Não desista dos teus sonhos, você pode estar na profissão que quiser. Se ame e se valorize, não aceite menos do que você vale. E vamos ocupar esses espaços. Se forem pequenos para nós cabermos, vamos criar nossos próprios espaços.