Esse é um texto que demorei refletindo se deveria ser escrito, se era um assunto que merecia ser tocado, aí percebi o tanto de vezes que eu já fiquei calada sobre isso e o quanto foi pior me silenciar, pois fiquei remoendo todo esse sentimento por anos.
Esse texto será sobre algo que infelizmente quase toda mulher já passou, independente de idade, profissão ou qualquer coisa, mas quando acontece com uma acompanhante parece ser pior, parece que temos culpa, que pedimos, que é normal e aceitável, sentimentos estes que geralmente toda mulher tem, mas no nosso caso, ele se estende ao julgamento dos outros. Esse texto é sobre abuso.
“Você pediu por isso”
Toda vítima que sofre abuso sexual tem tendência a sentir culpa pelo ocorrido, eu como acompanhante e também uma vítima recente, sinto isso ainda mais profundamente. É como se meu trabalho autorizasse os homens a me tocar sem o meu consentimento, a me falarem p*taria, me seguirem, e ainda dizerem que a culpa foi minha, afinal eu “estava pedindo”. A gente se sente fraca, impotente, sente até que merece, dá pra acreditar? E não é o meu trabalho que faz isso acontecer, é o simples fato de eu ser mulher, o trabalho só é mais uma desculpa para o abusador sentir direito de fazer o que faz, mas se não fosse isso, ele certamente acharia outra “razão”.
Sempre é grave
Muito já me perguntei até onde falar sobre isso é tempestade num copo d’água. Aí eu li essa frase de novo e percebi o tamanho do absurdo que ela traz. Menosprezamos nossa dor, ignoramos o trauma, porque parece que se o ato não chega às vias de fato, ao estupro propriamente dito, fica uma sensação de “tá, não reclama, não foi tão grave assim”. Foi sim. Pra mim foi grave a ponto de me fazer reviver outro trauma de infância, de me tirar o sono, de me fazer chorar escondida, de me sentir um lixo por ser mulher, e ainda achar que se eu não fosse acompanhante seria diferente. Não seria. Não precisei ser acompanhante pra passar por isso outras vezes, precisei apenas ser mulher.
Se sentir uma vítima não é coitadismo
O mais triste disso tudo e que ao mesmo tempo é um acalento quase absurdo, é que se você leitor ou leitora conversar agora com qualquer mulher a sua volta, ela quase certamente vai te relatar uma situação de abuso que viveu, e provavelmente lidou com isso como sendo algo normal e do dia a dia. “Ah, acontece né?”. Não era pra acontecer, mas acontece. Eu muito já evitei falar e pensar sobre isso porque me trazia uma sensação de vitimismo, nunca quis ser vista como coitadinha. Mas talvez eu e muitas mulheres precisamos nos olhar mais como vítimas e não como culpadas, carregar a culpa de algo que envolve seu corpo é perigoso, destrói sua autoestima, destrói seu amor próprio, e pode destruir sua vida.
Parece que temos o direito e o dever de permanecer caladas
Denunciar um abusador virou daquelas coisas que não dão em nada, pensa então pra uma acompanhante. Inclusive, em conversa com a acompanhante e advogada Frida Carla, ela me relatou que já foi atender uma trabalhadora sexual que ao denunciar uma situação de abuso, nem mesmo foi atendida e levada a sério. Nosso corpo parece ter virado algo de domínio público, perdemos nosso direito até de ser vistas pela lei, somos as mentirosas, sem moral, sem direito à segurança e dignidade mínimas. Eu muito falo sobre o quanto amo meu trabalho, e isso não mudou, mas saber que perdi o direito de ser levada a sério quando sofro uma violência, isso é também outra forma de ser violentada.
O abuso quase nunca vem do trabalho
Outro dia, em uma das minhas aulas do curso de psicologia, meu professor falou sobre consentimento e direitos sexuais. Será que nós acompanhantes temos isso? Ter até temos, mas temos esses direitos respeitados? Engraçado, se é que posso usar essa palavra dentro desse assunto, é que TODAS as situações de abuso que eu vivi até hoje não foram com clientes, mas com homens que se apoderaram de mim fora do trabalho. Meus clientes me levam flores, me escrevem poemas. Até conversando com colegas acompanhantes elas me relataram a mesma coisa. A grande questão é que nós não temos moral perante a sociedade, somos as mentirosas, a escória, as mulheres más que não podem reclamar porque estão ali cientes do risco, então que aceitem. O problema nunca foi meu trabalho, ele só me tirou o direito à justiça, mas nunca mudou minha posição de vítima em potencial.
Se você já sofreu qualquer situação de abuso sexual, ligue nos canais de denúncia Disque 100 ou 180. Não se cale.
Aviso: As opiniões apresentadas no textos representam o ponto de vista da colunista e não expressam, direta ou indiretamente, as opiniões da Fatal Model.