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O 17 de dezembro – ainda há violência

O 17 de dezembro – ainda há violência

Foto de Redação josef.santos

Redação josef.santos

3 minutos de leitura

Vidas que valem pouco mais que nada para a sociedade: quando Gary Ridgway, que ficou conhecido como Green River Killer justificava a escolha das vítimas de seus crimes, em sua imensa maioria trabalhadoras sexuais (ou supostas trabalhadoras sexuais – já falei aqui que qualquer uma de nós pode “parecer-se com uma”, e que é também por isso que todas devemos nos engajar na luta contra o estigma de puta?), sua principal justificativa era o fato de que ninguém se daria conta desses desaparecimentos, ou no mínimo demorariam muito para perceber.

E é fato: se hoje a cada dia que passa mais e mais de nós temos feito questão de nos identificar como parte dessa categoria tão discriminada e perseguida, talvez como uma estratégia de combate ao preconceito, até há poucos anos atrás isso não era o comum, e além do mais tínhamos que lidar com o abandono da família e o afastamento dos amigos.

Em especial em países onde a atividade é totalmente criminalizada, como é o caso dos EUA, não apenas o desaparecimento das nossas companheiras não chama a atenção como pode ser visto por boa parte da população como algo desejável: se você já se acostumou a achar normal a expressão tão brasileira quanto sinistra “bandido bom é bandido morto”, lembre-se que por lá também nós somos as bandidas. Literalmente.

Gary, que confessou mais de 70 homicídios perpetrados entre as décadas de 1980 e 1990, e chegou a dizer que perdera a conta de quantas foram as suas vítimas, foi condenado em 17 de dezembro de 2003 à prisão perpétua pelo assassinato confirmado de 49 mulheres, tendo mostrado os locais onde deixou cada um desses corpos,

Todas as suas vítimas eram mulheres, todas as suas vítimas foram escolhidas entre as que lhe pareciam mais vulneráveis: prostitutas, mulheres em situação de rua e adolescentes fugidas de casa. Mulheres com quem tinha sexo consensual e, na sequência, estrangulava, abandonando a maioria dos corpos à margem do Green River em Seattle – o que lhe rendeu o apelido. Gary não raro, voltava para fazer sexo com o corpo das vítimas, não por uma predileção especial pela necrofilia, mas para reduzir o risco de ser pego em novos assassinatos.

Gary foi considerado,  pelo número de vítimas confirmadas, o segundo maior serial killer dos EUA e a data de sua condenação foi tornada pelos movimentos internacionais o Dia Internacional de Combate à Violência contra Trabalhadoras Sexuais.

Infelizmente os crimes de Gary não foram caso isolado ou incomum. Ao redor do mundo, acompanhantes seguem sendo diariamente vítimas de violências maiores que o estigma – mas todas justificadas por este preconceito tão antigo quanto presente. No Brasil, embora a atividade de profissional do sexo nunca tenha sido considerada crime, era comum o sequestro de profissionais nas ruas pelas forças do Estado. Soila Mar, ativista gaúcha por direitos da categoria, conta como isso se dava em Porto Alegre,  minha cidade: as mulheres eram levadas para a Ilha, estupradas e torturadas por militares por horas, e muitas não voltavam. Eu tenho vontade de contar isso para que a gente não corra o risco, durante a leitura desse texto, de pensar que aqui não tivemos os nossos próprios serial kilers, acobertados por governos ditatoriais e corruptos.

Mas se hoje eu posso estar aqui falando sobre isso sem esconder o rosto – mesmo que siga exercendo uma atividade legalmente aceita e socialmente condenada – foi por conta da luta das que vieram antes, foi por conta de nosso movimento organizado. Décadas gritando por atenção,  com poucos recursos e muita garra. Eram as nossas vidas em jogo, afinal.

Um salve e um agradecimento às companheiras. Que um dia, o 17 de dezembro fale de coisas passadas. Que nossa luta por direitos, dignidade e respeito tenha finalmente vencido. No futebol,  na mídia e na vida real.

Leia mais da nossa colunista Monique Prada:

https://fatalprod.josef.com.br/blogcolunistas/enem-invisibilidade-do-trabalho-de-acompanhante/

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