29 de janeiro é o Dia Nacional da Visibilidade Trans, data que, pouco a pouco, começa a entrar no calendário oficial do ativismo brasileiro. Para celebrar esse marco e relacioná-lo com a temática que mais abordo por aqui, vou utilizar a coluna de hoje para escrever sobre as autobiografias trans de trabalhadoras sexuais. São apenas seis as que eu pude encontrar até o momento, sendo duas delas de pessoas que se entendem como “ex-travestis”, ou seja, que destransicionaram.
É interessante pensar que, diante da quantidade de obras de autoria trans publicadas no Brasil (eu parei de computar quando chegamos à primeira centena, no começo da pandemia), tão poucas abordem a temática do trabalho sexual, reflexo evidente do tabu que pesa sobre a profissão, mas também indício de que a maioria das pessoas trans que têm conseguido publicar suas obras seriam justamente aquelas que escaparam à compulsoriedade do trabalho sexual.
PIONEIRISMO
- Princesa: Depoimentos de um travesti brasileiro a um líder das Brigadas Vermelhas (Nova Fronteira, 1995), de Fernanda Farias de Albuquerque e Maurizio Jannelli.
Fernanda é uma mulher trans do interior da Paraíba que vive a prostituição em grandes capitais brasileiras no fim da Ditadura e, com a intensificação da transfobia após o início da epidemia de HIV/aids, migra para a Europa atrás de uma sociedade mais tolerante (“Na Europa não te matam a tiros. Isto era importante, isto bastava. O resto, coisa para turista.”, p.105). Na Itália, acaba sendo presa, quando descobre ter contraído o HIV. Para retomar as rédeas da própria vida, decide escrever sua história e, detalhe, em italiano, no italiano belissimamente caótico que aprendeu nas ruas.
Mas não foi esse o texto publicado em livro e sim uma versão bastante adaptada por Maurizio Jannelli, um preso político que Fernanda conheceu na prisão (os manuscritos originais, assim como o texto que virou livro e outros materiais, estão disponíveis no site Princesa20,). O livro é um marco do ativismo transgênero e da literatura migrante na Itália, tendo sido traduzido para o português, espanhol, alemão, grego e, recentemente, francês.
Note-se que é uma das primeiras autobiografias de trabalhadoras sexuais brasileiras, tendo sido publicada dois anos após Eu, mulher da vida (1992), da fundadora do movimento Gabriela Leite, e Estes homens passam por minha mesa de massagem: suas histórias, suas taras, seus lamentos (1978), de Solange Jobert.
EX-TRAVESTIS
- A intimidade de um ex-travesti (Central Gospel, 2013), de Joide Miranda.
- Mel e fel (Expressão Gráfica, 2016), de Antônio Teixeira Benevides Neto.
Essas duas obras são interessantíssimas e muito diferentes entre si. São mergulhos profundos na cultura da travestilidade e da prostituição, envolvendo até a atuação no exterior, com ambas as figuras decidindo “destransicionar” ou, talvez, fazer uma nova transição de gênero, dessa vez para o masculino: Joide o fazendo por questões religiosas e utilizando o seu testemunho com propósitos evangélicos, Antônio por estar saturado seja da prostituição, seja de viver como travesti (“Não aguentava mais ver pau na minha frente. E não me sentia mais à vontade, vivendo sob a pele de uma mulher.”, p.573).
De qualquer forma, são obras importantíssimas para quem se interessa pela temática do trabalho sexual e da transgeneridade.
NOVAS PERSPECTIVAS TRANS
- E se eu fosse puta (hoo editora, 2016), de Amara Moira.
- Eu, travesti (Record, 2019), de Luísa Marilac e Nana Queiroz.
- Trinta anos de clausura: as memórias de Porcina (autografia, 2021), de Porcina d’Alessandro.
Os últimos oito anos assistiram a uma proliferação de publicações de autoria trans, com três autobiografias de trabalhadoras sexuais dentre elas. A primeira seria a minha própria obra, que inaugura esse novo momento das produções. Antes dela, os únicos exemplos que possuíamos eram de uma prostituta travesti que publicou sua autobiografia primeiro em italiano e de duas figuras que não se entendem mais como travestis. Sendo essa uma profissão tão presente em nosso meio, é de se espantar que tenha demorado tanto até conseguir encontrar espaço no mercado editorial.
Seja como for, o que se observa agora é a ampliação das narrativas: a minha explorando a prostituição de rua em Campinas/SP, a de Marilac abordando experiências de todo tipo (inclusive tratando de tráfico de pessoas) e a de Porcina englobando, em especial, sua atuação como bombabeira (pessoa que aplica silicone industrial em outras travestis) e dona de pensão (onde moram travestis que exercem a prostituição).
Outro elemento indicador de estarmos perante um novo momento é o fato de, para além destas três obras, ainda estar prevista para este ano a publicação de Transando com Leo (O Sexo da Palavra, 2024), de Leonardo Tenório, autobiografia de um homem trans profissional do sexo, algo raro mesmo considerando o cenário internacional.
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