O texto de hoje não será fácil para mim, mas sinto que preciso escrevê-lo, pari-lo. Ele precisa sair de mim. Todas as vezes em que fui entrevistada, na época em que era acompanhante, me perguntavam se eu já havia passado por situações de violência com clientes. Eu sempre detestei o olhar de comiseração que costumava acompanhar essa pergunta, a evidência de que me viam como uma pobre coitada.
Antes de prosseguir com a minha elaboração, preciso dizer que falo de um lugar de privilégio. Entendo que muitas trabalhadoras sexuais não têm a mesma sorte e vivem, diariamente, situações ultrajantes. Eu, Gabriela, falo sob a perspectiva de uma mulher que ESCOLHEU se tornar acompanhante. Isso me permitiu navegar pela prostituição com alguma liberdade e também me privou de certos aborrecimentos e de muitos riscos.
Dito isso, posso afirmar com veemência que as situações de abuso que enfrentei não foram vividas no contexto da prostituição. Os homens que pagavam para estar comigo eram cordiais e valorizavam a minha presença. Era como se eu fosse uma divindade materializada única e exclusivamente para receber a adoração deles. Se eram habilidosos em suas demonstrações de “admiração”, já é outra questão. O fato é que tentavam — uns mais, outros menos —, com as ferramentas e saberes que possuíam, tornar a experiência agradável.
Nem sempre era bom, claro, mas isso não é mérito das relações pagas. Tem muita gente com desempenho sexual pífio por aí. Pelo menos, eu recebia algo, mesmo que não fossem orgasmos.
Mas voltando ao tema principal deste artigo, o que eu queria dizer é que as situações abusivas que enfrentei não ocorreram na época em que eu era acompanhante. Vieram dos meus relacionamentos, de homens que diziam me amar.
Eu dividi a minha vida com um homem que, quando eu não queria transar, se debatia na cama como uma criança birrenta e dizia que não entendia como eu tinha transado com tantos homens por dinheiro e que, justo agora, na vez dele, eu não conseguia me esforçar para transar “por amor”.
Um dia, enquanto dormíamos juntos, acordei assustada: esse homem ejaculou no meu rosto enquanto eu dormia. Obviamente, ele fez isso sem o meu consentimento.
Outro desses seres humanos desprezíveis me enforcou com o cinto de segurança enquanto me dava socos na barriga. Destruiu o meu celular, enviou fotos íntimas minhas para o meu pai, numa tentativa de arruinar o meu bom relacionamento com ele. E eu, que me considerava uma mulher muito esclarecida para passar por tudo aquilo, não tive coragem de contar para ninguém. Foi só quando um outro acontecimento tornou pública a loucura dessa relação que eu finalmente tive coragem de assumir a minha vulnerabilidade e pedir ajuda.
Me pergunto se o fato de ter sido puta fez com que esses homens se sentissem autorizados a me tratar assim ou se esse comportamento partia de uma premissa anterior, um ódio irracional às mulheres. Após anos elaborando, chego à conclusão de que é um misto dos dois.
Talvez eu tenha sido apenas o bode expiatório. Eu era a culpada de ensandecer os homens, de tirá-los do prumo com meu comportamento errante e disruptivo. Como é que eles iriam se manter controlados ao meu lado se eu era a própria Eva, aquela que os obrigou a comer a maçã e cair em pecado?
Essa foi a mensagem espalhada por esses homens, tão respeitados em seus círculos profissionais e sociais. Foi a mensagem comprada por quem acredita em contos de fadas com moral duvidosa. Foi a versão aceita por outras mulheres que hoje habitam esses lugares onde eu já estive.
Eu torço para que seja diferente com elas, porque quero acreditar que as pessoas podem mudar. Mas, se a história se repetir, desejo que elas gritem por ajuda no primeiro abuso. Eu tive vergonha e fiquei paralisada. Isso só serviu para estender um sofrimento que já seria traumático.
Não foi a prostituição que me traumatizou. Foram os meus companheiros (des)amorosos de vida.
Escrevi tudo isso para dizer que, na maioria das vezes, o abuso vem de onde menos esperamos. E que qualquer mulher, em qualquer contexto social, pode passar por uma situação dessas.
Se você, mulher, que me lê agora, já passou ou está passando por isso, saiba que você não está sozinha.
Não sinta vergonha de procurar ajuda. Quem deve se sentir constrangido nessa situação são os abusadores, não as vítimas.
Conte a sua história. Peça ajuda.
Se der medo, vá com medo mesmo, mas mantenha-se viva para saborear os próximos capítulos da sua caminhada.
Se você já sofreu ou sofre violência doméstica ligue 180. Se você já presenciou algum tipo de violência contra as mulheres, também denuncie. Existem diversos serviços e instituições que podem prestar o atendimento e o apoio necessários para romper o ciclo da violência.
Acompanhe nossa colunista Gabi Benvenutti nas redes sociais clicando aqui. Leia também: