Ao longo das últimas colunas, começamos um mergulho na cultura travesti e aludi, em diversos momentos, a um dos pilares dessa cultura, o bajubá. Imagino que quem me acompanha já esteja familiarizado com a palavra e saiba mais ou menos a que ela remete, mas a proposta aqui será abordar esse tema desde os pontos mais básicos, para que mesmo quem não faça ideia do que essa palavra representa consiga acompanhar a discussão.
Bajubá é o nome que se deu à língua que travestis, sobretudo as que exerciam a prostituição nas ruas, criaram para conversar sem que quem fosse de fora da comunidade entendesse. Uma ferramenta de defesa portanto, crucial num contexto de violência absurda contra essa população. Importante dizer que bajubá (ou pajubá, tanto faz) é a forma como ela é mais conhecida hoje, mas outros já foram os nomes dados a essa linguagem, p.ex. “bate-bate” (como aparece em Bicha tu tens na barriga, eu sou mulher…: etnografia sobre travestis em Porto Alegre, dissertação defendida por Cristina de Oliveira Florentino em 1998) e mesmo “bichano”, ou “bichês” (como propõe a seção Bixórdia da edição de março de 1980 do Jornal Lampião da Esquina, que ilustra o “dialeto das bonecas do subúrbio” com a frase “os aníbam vão acuendá as monas e levar pro ilês”). Nesta frase, perceba-se que, em 1980, palavras como “alibã”, “acuendar”, “mona” e “ilê” já estavam perfeitamente incorporadas à língua.
Os três dicionários do bajubá
A palavra “bajubá”, por sinal, comparece na primeira tentativa de sistematização dessa língua, o Diálogo das bonecas, de 1992, mas no verbete que lhe é reservado ela é traduzida apenas como “voz, fala, som da voz”. No entanto, nas seções de “babadinhos” e “frases mais usadas”, percebe-se que seu significado é mais amplo, abarcando “fato” (o adé me aquendou um bajubá uó), “explicação” (a mona cá aquenda um bajubá odara na desaquendação da maldita) e mesmo “dialeto” (desaquenda o bajubá de mona de equê). Organizado por Jovanna Baby, que, à época, era presidente da Associação de Travestis e Liberados do Rio de Janeiro (ASTRAL), o Diálogo se propunha a divulgar o “dialeto criado pelos travestis da prostituição para se defenderem dos ataques sofridos” (título do prefácio, assinado pelo antropólogo Raul Lody) e, ao mesmo tempo, servir como instrumento de conscientização no enfrentamento da epidemia do hiv/aids.
Esse primeiro levantamento foi expandido e republicado na obra Bajubá Odara: Resumo histórico do nascimento do movimento de travestis no Brasil (2021), de autoria da própria Jovanna Baby (ele pode ser comprado no site da Fonatrans). A ele vêm se juntar outras duas publicações extraordinárias: Bichonário: um dicionário gay (Salvador, 1996), de Orocil Junior, e Aurélia: a dicionária da língua afiada (São Paulo, 2006), de Angelo Vip e Fred Libi. No primeiro, não se encontra a palavra “bajubá” (ou “pajubá”), mas no segundo sim, com a seguinte definição: “baseado nas línguas africanas empregadas pelo candomblé, é a linguagem praticada pelos travestis e posteriormente estendida a todo universo gay. O bajubá falado emprega uma mistura lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau, do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa. [var.: pajubá].”
O gênero em curto-circuito
Termino esse mergulho introdutório na história do bajubá chamando a atenção de vocês para um detalhe que vem ao encontro das minhas colunas anteriores (sobre o termo “viado” no bajubá): os três dicionários trazem a palavra “travesti” no masculino (o gênero dela em francês, de onde a importamos), mesmo aquele que foi elaborado por uma travesti e que tinha travestis como público-alvo. Percebam ainda que, no Diálogo das bonecas, a expressão “bajubá de mona de equê” é traduzida por “dialeto de travesti”, equiparando-se, assim, “travesti” e “mona de equê” (“mulher de mentira”) sem que isso seja um problema. No Bichonário, teríamos tanto “mona de equê” quanto “mona de araque” significando “travesti” e, no Aurélia e no Bajubá Odara, a expressão divertidíssima “amapoa de canudo”, traduzida por “travesti não operada; que tem pênis, mas jura que é amapoa”.
Chamo a atenção para esses pontos porque eu adoraria que conseguíssemos ver nisso um sinal não de uma suposta transfobia que impedia travestis de se reconhecerem como subcategoria de “mulher”, mas sim do profundo foda-se que elas desde sempre deram a qualquer tentativa de encaixotá-las no binário de gêneros. Nada contra quem gosta de se imaginar “mulher de verdade”, mas aqui o que está em jogo é a pirataria, a paródia, o inverossímil, o deboche e só é possível começar a entender de cultura travesti quando a gente se dá conta disso.No Bajubá Odara, que reeditou e expandiu o Diálogo, uma nota de rodapé indica que o texto foi “devidamente corrigido em alguns aspectos de gênero identitário, pois à época travestis e transexuais eram tratadas como homossexuais, gays no masculino”.
Na minha cabeça, essa nota só faz sentido porque as gerações atuais desconhecem a história da travestilidade e se chocariam com essa anarquia de gêneros. Se conhecessem, achariam graça desse contato com a lógica travesti de algumas décadas atrás (e que ainda está vivíssima nas ruas).
Sobre a autora
Amara Moira é natural de Campinas, mas decidiu morar em São Paulo após se assumir travesti. Ela é doutora em crítica literária pela Unicamp, pesquisadora de gênero e sexualidade e, além disso, uma escritora que traz o putafeminismo para o centro de suas obras, como se vê em: “E se eu fosse puta” (n-1 edições, 2023), autobiografia sobre suas experiências como trabalhadora sexual, e “Neca + 20 Poemetos Travessos” (O Sexo da Palavra, 2021), que reúne seu monólogo em bajubá, a língua das travestis, e sua produção poética sobre vivências LGBTI+.
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