Sempre pensei no quanto o mercado sexual para homens e mulheres poderia ser diferente, especialmente na experiência com o cliente e em como nos sentimos enquanto profissionais do sexo. Porém, após assistir ao filme Boa Sorte, Leo Grande, não só mudei de ideia como me identifiquei incrivelmente com o personagem principal, que poderia facilmente se chamar Paula Assunção. Aviso: daqui em diante trarei muitos spoilers.
A trama gira em torno de uma mulher viúva, sexualmente curiosa, que contrata um garoto de programa em busca de prazer. Algo interessante logo de início é quando ela confessa que queria alguém jovem, e não um velho. É incrível como palavras ditas costumeiramente por homens soam estridentes quando saem da boca de uma mulher. Na verdade, ela buscava mais um checklist sexual do que prazer, já que sequer acreditava que poderia tê-lo.
Surpreendentemente, as semelhanças com a minha vida já começam aqui. Eu fui essa mulher aos 21 anos, mas não era viúva nem alguém contratando um garoto de programa (algo que ainda quero fazer). Eu era a garota de programa, que buscava nessa profissão algo que me acendesse, pois me sentia um cadáver em relação ao sexo, tal qual Nancy confessa se sentir.
Assistindo ao filme, estranhamente me senti na pele dos dois personagens ao mesmo tempo. Leo, como profissional do sexo, tem muitas das minhas características enquanto acompanhante: atencioso, cuidadoso com o nervosismo da sua cliente, comedido ao falar de si mesmo para não pessoalizar o encontro, mas, principalmente, a forma como ele vê o trabalho sexual parece ter sido tirada da minha mente. Nancy, cheia de rodeios para se referir ao pagamento e com medo de parecer grosseira, ouve de Leo que não há nada de grosseiro em ser pago pelo seu trabalho. Isso me fez lembrar os inúmeros clientes que se referiram ao meu pagamento como um “presente”.
Nancy, uma senhora repleta de moralismo e que acha a profissão de Leo degradante e humilhante, imagina logo que ele não tenha estudo ou família. O “elogia” dizendo que é inteligente demais, sugerindo que nessa profissão não se encontram pessoas inteligentes ou que usem palavras bonitas. Essa visão retrata o pensamento da maioria da população, fruto de muita repressão sexual e baixa autoestima. Eu mesma já tive inúmeros clientes surpresos ao descobrirem que sou colunista de um blog. Talvez, se eu fosse analfabeta, certamente não ficariam chocados.
Outro ponto em comum é quando Leo diz que nunca houve um cliente que não o interessasse de alguma forma. Ok, eu já tive minhas experiências negativas, mas, na grande maioria delas, isso também foi um fato para mim. Ninguém parece acreditar quando digo que consigo chegar ao orgasmo com quase todos os meus clientes. Pensando bem, acho que as pessoas chegam a essa conclusão porque conhecem apenas uma única forma de gozar. Para mim, o prazer está na sensação física e no que minha imaginação é capaz de criar. Não é algo refém do que estou vendo, muito menos depende exclusivamente do outro. Eu tenho minha responsabilidade em me proporcionar um orgasmo.
E ninguém é uma coisa só. Hoje eu posso ser o Leo, mas já fui a Nancy. Acho que, em algum momento, todos fomos levados a crer que profissionais do sexo “vendem seus corpos”. Como muito bem disse Leo Grande: ninguém nos compra, compram nosso serviço, uma fantasia. Somos um personagem dispostos a agradar e satisfazer, mas também temos desejos e buscamos nosso prazer tanto quanto o cliente.
Ao longo dos anos trabalhando como acompanhante, atendi muitos clientes que tornavam o atendimento terrivelmente mecânico, algo como “tira a roupa e vamos transar” – péssimo, como alguém conferindo itens antes de colocá-los em uma mala. E sexo é como dançar, mas dançar como se ninguém estivesse olhando, sem coreografias ou medo de parecer idiota. Nessa dança, o/a acompanhante é quem conduz os passos. Afinal, esse negócio de tirar a roupa e transar para acabar logo é algo que muitas Nancys vivem a vida toda. Eu tive a sorte de passar por isso por pouco tempo.
A diversidade de clientes e seus desejos peculiares também parecem ter saído diretamente da minha realidade. Existem clientes que só gostam de conversar, outros que querem transar sem falar uma palavra. Sim, eu já tive desses. O primeiro caso, então, é a maioria. O que quase todos os clientes têm em comum é uma certa dificuldade em discernir a fantasia vivida no encontro com uma acompanhante da realidade. Essa fantasia existe porque ali somos um personagem. Isso não quer dizer que inventamos nosso prazer, mas que, naquele momento, escolhemos ser uma pessoa específica que não somos lá fora. Então, o convite para um café “na parceria”, que quase todo cliente faz (inclusive a Nancy), não é para nós. É para nosso personagem. Nós, de fato, esse cliente nem conhece – e nem queremos que conheça.
Outro ponto em que me vi muito no filme foi como filha. Acho que minha mãe era a fusão da mãe de Nancy com a mãe de Leo (estou quase achando que a Netflix leu minha mente para esse enredo). Nancy cresceu ouvindo da sua mãe que meninas devem se dar ao respeito e não provocar os homens. Ou seja, o comportamento deles é fruto do nosso, nós somos as responsáveis. Graças a esse ensinamento, sofri abuso por anos e nunca tive coragem de contar. Pela lógica, era minha culpa. Enquanto isso, a mãe de Leo o expulsou de casa ao vê-lo em atos sexuais com amigos. Essa parte não é literal para mim, mas, para minha mãe, bastava eu comprar uma calcinha fio-dental ou andar ao lado de um menino na escola que eu já era “puta”, apareceria grávida e ficaria “falada”. Acho que ela profetizou. Ou me inspirou. As coincidências são tantas que, no filme, Leo diz que sua mãe fala que não tem mais filho. Para surpresa de vocês, eu já tive até nota de falecimento publicada pela minha. E não, eu nem era acompanhante nessa época. Por isso, me refiro a ela no passado. Trato com a mesma gentileza.
Mas, deixando o drama de lado, algo que esse filme mostra de forma indiscutível é o quanto a repressão sexual e a moralidade podem ser nocivas, e como a falta de descoberta do próprio prazer traz prejuízos. Uma mulher que nunca gozou não é apenas uma mulher que nunca gozou – é uma mulher que não conseguiu amar seu corpo e se sentir livre o suficiente para tocá-lo. TOCAR A SI MESMA. Como é possível que nós, mulheres, tenhamos tanta dificuldade em mover nossa mão alguns centímetros para tocar algo que nos pertence? O preconceito aprisiona o corpo e a mente.
O espectador passa cerca de uma hora e meia assistindo a um filme, esperando que um homem dê o primeiro orgasmo a essa mulher. Inclusive, eu esperava por isso. Como se prazer fosse algo possível de sentir apenas se nos for concedido pelo outro. E, para minha feliz surpresa, Nancy consegue seu primeiro orgasmo sozinha, com seus próprios dedos. Para mim, não haveria final melhor. Se nós não soubermos ler nosso próprio manual, por que esperamos e delegamos que outra pessoa saiba?
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