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CARTILHA PIONEIRA DE COMBATE À AIDS ESCRITA EM BAJUBÁ

CARTILHA PIONEIRA DE COMBATE À AIDS ESCRITA EM BAJUBÁ

Foto de Redação josef.santos

Redação josef.santos

3 minutos de leitura

Dentro da pesquisa que venho fazendo sobre a história travesti no Brasil, um documento se destaca: a cartilha “Traveca esperta só transa com camisinha na neca” (1995). Feita em parceria pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) e a Associação dos Travestis de Salvador (ATRAS), com financiamento do Ministério da Saúde, a cartilha de prevenção à aids foi a primeira dedicada exclusivamente à população de travestis. Ela recebeu inclusive atenção da mídia hegemônica por seu pioneirismo, como se pode ver na matéria que o prestigiado jornalista Mauricio Stycer dedicou a ela, “Travestis ganham cartilha anti-Aids” (Folha de SP, 20/08/1995).

Um dos diferenciais da cartilha é o fato de ela vir repleta de bajubá, daí surgirem a todo momento frases do tipo: “Se a maricona ou o boy quiser meter sem camisinha, não tem aqué certo que vale mais que sua vida. Este programa furado é ! Pode ser a neca mais odara do mundo: no edi, só de camisinha!” A iniciativa é ótima, pois, se o desejo era falar com essa população em particular, nada melhor do que usar a linguagem que as próprias bonitas usam, não é mesmo?

Cartilha para travestis em bajubá sobre aids
Fragmentos da cartilha “Traveca esperta só transa com camisinha na neca” (1995)

Na obra, há desde indicações de onde encontrar, e como utilizar adequadamente, o “oxô de neca” (o que pode ser estranho para quem cresceu vendo camisinhas distribuídas gratuitamente em tudo quanto é canto e não faz ideia de que, nos anos 1990, camisinha era ainda uma novidade no Brasil e nada acessível) até explicações sobre as formas de transmissão do HIV. Pensando no combate ao preconceito, ela apresenta também exemplos concretos de o que não transmite: “Beijar, abraçar, tirar sarro, quebrar louça, amassar quibe, fazer frentinha, roçar — nada disto pega Aids. Punheta, fazer coxinha, meter o dedo no edi, chupar o peito, pode fazer à vontade, pois nada disto pega Aids.”

A aids irá aparecer no documento de formas variadas, como “a maldita”, “a menina” e “a tia”. Ainda hoje, o mero acréscimo de um artigo definido às palavras pode convertê-las numa referência à aids: “a febre”, “a gripe”, “a quatro letrinhas”, “o bichinho (do ram-ram)”, “o docinho”, “o babadinho”, etc. Nada possui mais sinônimos do que essa palavra, o que é um indicativo do peso que a questão possui para a comunidade. Daí a importância de uma cartilha como essa.

No Diálogo de Bonecas (1992), primeiro dicionário publicado de bajubá (e que já foi discutido numa coluna minha), havia orientações a esse respeito na seção “Babadinhos (dicas)”, como se vê, por exemplo, em “aquendar o baco só com ochó de neca”,”se o ocó não aquenda ochó de neca, desaquenda, é babado”, “aquenda o ojum para a neca do ocó e aquenda se o ochó de neca está bem colocado”, etc. No entanto, este ponto não era central na obra.

Termino mencionando um outro aspecto importantíssimo da cartilha, as informações acerca do trabalho sexual. Dado que a esmagadora maioria das travestis trabalhava com sexo, fazia-se necessário orientá-las a respeito do que a legislação não criminalizava e do que poderia dar cadeia: “Desmunhecar, vestir-se de mulher, namorar com pessoa do mesmo sexo, ir para hotel com outro homem, nada disto é crime e ninguém pode ser ameaçado ou preso por praticar tais atos. Mas preste atenção: tirar a roupa, ou exibir os órgãos genitais ou transar em vias públicas, isto sim, pode ser considerado como atentado ao pudor. Azuelar, fazer chôrri ou fazer atracação na maricona, isto sim, é contravenção, além de ferir o direito de cidadania do cliente. Para evitar babados e rebucetês, é melhor acertar o preço antes do programa.”

O curioso é que, na matéria de Stycer, isso foi traduzido por “A cartilha lembra que ser travesti não é crime, mas se prostituir é”. Estão vendo por que o putafeminismo é tão importante?

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