Há algumas semanas, finalmente pude publicizar uma pequena mudança de rumo na minha vida: agora faço parte do corajoso time de mulheres donas de livrarias em Porto Alegre.
O convite veio no início do ano: os amigos Lobo e Samanzuca, fundadores da Brasa Editora, vendo a necessidade de ampliação do espaço físico da empresa, decidiram abrir uma loja, uma livraria com um café. Para encarar essa empreitada feita com muito amor e pouco dinheiro, convidaram três outros amigos para tocar esse projeto: o cartunista Rodrigo Geraldi, o cozinheiro e livreiro Tiago Magalhães, e eu.
Inicialmente, pensamos em um prédio na República, mas a negociação não foi adiante, e adiamos os planos. Na sequência, surge um casarão na José do Patrocínio esquina com a Joaquim Nabuco, casarão que por anos abrigou a ONG Guayi e agora ostenta lindamente a cor preta em sua fachada, certamente um dos espaços mais belos e chamativos do entorno.
A inauguração foi adiada por causa da enchente que inundou simultaneamente o meu bairro, o bairro onde moravam Lobo e Samanzuca, e o bairro onde fica a livraria, onde por semanas só era possível passar de barco. Finalmente, conseguimos inaugurar num evento que acabou se tornando muito maior do que esperávamos, tomando totalmente a esquina com nossos amigos e admiradores do trabalho da Brasa.
Estamos num momento de reconstrução no Estado, que teve inundações severas em 87% do seu território, ocasionando grandes perdas financeiras e materiais, para além do afetivo e dos danos à memória, além de vítimas fatais entre adultos, crianças, idosos, animais. Todo o país voltou os olhos para o RS, numa junção de esforços e solidariedade comovente.
A inauguração da Loja da Brasa vem nesse momento em que todos aqui nos esforçamos para manter viva a esperança de um futuro.
E para mim, essa proposta desafiadora que se concretizou no meu pior momento emocional e financeiro tem um gosto todo especial. Como ativista que construiu de certo modo toda a sua trajetória fora daqui, e como escritora que raramente viu seus livros à venda em livrarias da sua própria cidade, organizar e estar à frente de um espaço tão especial traz a possibilidade de não apenas ter seu livro à venda e sempre exposto com algum destaque mas também a de organizar um espaço com obras escritas por trabalhadoras e trabalhadores sexuais.
O nosso espaço para a literatura putafeminista, mas não apenas – nem todas as trabalhadoras sexuais escrevem sobre feminismo, nem todas defendemos as mesmas pautas e ter essa diversidade por aqui nos interessa muito. A escrita de si, assim como a escrita sobre nós, precisa estar disponível, somos um grupo social e laboral historicamente ignorado e na contramão dessa tendência, somos cada vez mais pessoas publicando sobre suas vivências na prostituição, sobre direitos e temas que nos são tão caros, mas deveriam ser tão caros também para essa sociedade, que nos joga para baixo do tapete mas não vive sem nosso trabalho.
E de certo modo, talvez essa sociedade não nos ignore de propósito: há pouca boa vontade – e vou falar agora especialmente de Porto Alegre mas sabendo que não é caso isolado – há pouca boa vontade dos livreiros em relação ao tema. O receio de críticas e de cancelamento eu suponho que esteja bem presente.
Então, tomo essa responsabilidade para mim, que já fui cancelada por aqui: a curadoria de obras sobre o tema do nosso trabalho.
Em breve teremos por aqui a biografia de Fátima Medeiros, fundadora da APROSBA, de Leo Tenório, homem trans e trabalhador sexual recifense. A Editora Merda na Mão promete para os próximos meses a biografia de Frida Carla, conhecida como a advogada mais ousada do Brasil, e sediaremos o debate de lançamento.
E como não poderia deixar de ser, em breve teremos debates sobre o Putafeminismo, livro que completa seis anos este mês e ainda é um grande desconhecido para os porto-alegrenses.
Esse tema precisa deixar de ser tratado como maldito. Não há nada mais presente na vida dessa sociedade do que as acompanhantes!
Clube de Leitura
Faça parte do Clube do Livro Fatal Model! As três primeiras obras do clube serão dedicadas a figuras pioneiras:
- em julho discutiremos “Puta Autobiografia” (Claraboia, 2023), de Lourdes Barreto, em coautoria com Leila Barreto e Elaine Bortolanza,
- em agosto será a vez de “Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta” (Objetiva, 2008), de Gabriela Leite, em coautoria com Márcia Zanelatto,
- e em setembro teremos “A Princesa: depoimentos de um travesti a um líder das Brigadas Vermelhas” (Nova Fronteira, 1995), de Fernanda Farias de Albuquerque, em coautoria com Maurizio Jannelli.
Serão dois encontros mensais e as datas de julho já estão definidas. Dia 18/07 (quinta), das 19h às 21h, teremos um encontro online, no Google Meet, para apresentação da obra (inscreva-se neste formulário). Já no dia 28/07 (domingo), das 19h às 21h, eu e Amara Moira uma live no canal do Clube de Leitura no YouTube da Fatal Model para aprofundarmos a discussão e trazermos uma contextualização putafeminista. Nos vemos lá?