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HOMENS DE CALCINHA – o terror de muita travesti

HOMENS DE CALCINHA – o terror de muita travesti

Foto de Redação josef.santos

Redação josef.santos

4 minutos de leitura
Certa vez, uma travesti me contou que suas amigas, travestis também, ao descobrirem que ela deixava e até estimulava os clientes a vestirem calcinha e a explorarem a feminilidade que eles precisavam reprimir no dia a dia, essas travestis criticaram-na por ela estar “acostumando mal esses lixos”. “Lixo” é uma palavra bastante usada por travestis para identificar tanto homens que nos tratam mal, quanto homens por quem nutrimos desprezo.

Bom, em qual das duas acepções teria sido usada no relato acima? A ideia da coluna de hoje é refletir sobre essa fantasia dos clientes e sobre os sentidos que ela costuma ativar quando é proposta para uma travesti.

A Complexidade das Fantasias no Contexto Trans

O primeiro ponto é entender que, por conta de todas as provações que travestis enfrentam ao iniciar sua transição (e mesmo antes, pois para muitas não existe esse tal Dia D, ou melhor, Dia T), é comum que se sinta incômodo diante de homens cisgêneros que queiram brincar de “ser mulher” apenas no espaço seguro dos quartos do motel.

“Ser mulher”, no caso, significando usar calcinha, andar de salto alto, botar um vestidinho, uma peruca e, frequentemente, ser passivo na relação sexual. Frase que todas as travestis que trabalham com sexo já devem ter ouvido de clientes: “quero ser mulher de uma mulher na cama”, o que se traduz por “quero dar o cu para você e, assim, me transformar na mulher de uma mulher”.

Sofremos tanto para ser quem somos e daí vem um sujeito querendo se sentir mulher facinho assim, botando adereços femininos e andando de salto dentro de um quarto de motel? Um sujeito que acredita que vai virar mulher por dar o cu? Só que, se dar o cu faz com que ele se torne mulher, essa fantasia acaba deslegitimando o nosso próprio gênero, pois quem está comendo o cu deles somos nós.

Outro ponto tem a ver com o pênis: todas as tentativas de deslegitimar nosso gênero irão, de uma forma ou de outra, apontar para essa parte dos nossos corpos e, sendo assim, muitas de nós acabam desenvolvendo uma relação de aversão com relação a ele. Os clientes, contudo, muitas vezes nem imaginam que essa parte do nosso corpo pode ser delicada para nós e já vêm ávidos pra cima dela, querendo vê-la dura, enorme, jorrando leite. Aqui já começamos a entender porque tantas travestis têm ódio mortal desse tipo de cliente.

Desafiando Expectativas Sexuais

Oras, nós também somos crias dessa sociedade normativa e não é simples romper com os ideais de comportamento que nos são inculcados desde o berço. Sim, eu adoraria viver num mundo que não acredita que a “passividade sexual” seja um atributo da mulher, mas como não acreditar nisso se essa narrativa é esfregada nas nossas fuças a todo momento?

Filmes, séries, novelas, livros, pinturas… é raro encontrar obras que retratem a sexualidade humana fora desse paradigma, mesmo quando as personagens em questão são LGBTI+ (daí a figura mais masculina adota o papel de ativa e a mais feminina, de passiva; isso ajuda a entender também por que pessoas cis hétero sempre perguntam a casais LGBTI+ quem é o homem e quem a mulher na cama).

Lembro de uma amiga travesti que me contou ter uma vida sexual bastante agitada desde a adolescência até o começo da vida adulta, tendo dado pra cidade inteira onde ela nasceu. Daí ela ter imaginado que a prostituição seria um trabalho tranquilo, já que ela gostava tanto de transar e era capaz de transar com homens de todos os tipos.

No entanto, o primeiro cliente já fez com que ela entrasse em crise. O motivo? Ele queria ser passivo com ela. Percebam: ele não necessariamente a tratou mal, a violentou nem nada disso. O choque se deu porque, em toda a sua tão agitada quanto precoce vida sexual, ninguém nunca havia requisitado que ela fizesse a parte ativa, prática que continha a ameaça da masculinização.

Aceitando ou Recusando Práticas Sexuais

Então, sim, trabalhar com sexo será tranquilo se as modalidades que a gata realizar forem exatamente as que lhe dão mais tesão, porém, nem sempre serão esses os clientes que virão atrás dela. Quando isso ocorre, o que fazer? A travesti pode simplesmente recusá-los, recomendando alguém que tope esse tipo de práticas, pode também aceitar e fazer um pegê meia boca, só pensando no dinheiro (ainda que, com isso, ela corra o risco de perder o cliente e de manchar sua reputação), ou, ainda, ela pode tentar ir desconstruindo esses paradigmas em sua cabeça, por entender que eles são um obstáculo ao êxito no trabalho sexual.

Não quero dizer, com isso, que devemos sair topando todo tipo de práticas e fantasias, mas sim que poderíamos analisar de forma mais racional as modalidades de sexo que rechaçamos, tentando entender se é possível transformar os sentimentos incômodos que elas nos inspiram. A amiga que citei no começo do artigo percebeu que havia todo um público interessado em brincar de “ser mulher” entre quatro paredes e ela foi se permitindo entrar na fantasia deles, ganhando bastante dinheiro assim.

O que fez com que ela mudasse a chavinha foi perceber que aquilo era puro teatro, uma espécie de multiverso do cliente, e que dava para participar dessa encenação sem deixar que a historinha representada naquele palco (que era, no caso, o quarto do motel) vazasse para a vida fora dos palcos.

Explorando Futuras Discussões sobre Fantasias e Sexo

Pretendo voltar a esses pontos em colunas futuras, talvez até na próxima, dependendo da repercussão do debate, pois acredito que há muito o que discutir quando o assunto são fantasias eróticas e trabalho sexual. A ideia aqui era fazer com que, de um lado, entendêssemos os incômodos que essas práticas podem gerar quando propostas para uma travesti (daí ser interessante ter isso em mente na hora de fazer tal pedido a ela) e, de outro, que também considerássemos a possibilidade de transformar a maneira como encaramos determinadas práticas, pois isso pode gerar bons retornos financeiros e ainda fazer com que fiquemos menos frustradas ao lidar com as fantasias de clientes. Faz sentido?

Aviso: As opiniões apresentadas no texto representa o ponto de vista da colunista e não expressam, direta ou indiretamente, as opiniões da Fatal Model.

Amara Moira é natural de Campinas, mas decidiu morar em São Paulo após se assumir travesti. Ela é doutora em crítica literária pela Unicamp, pesquisadora de gênero e sexualidade e, além disso, uma escritora que traz o putafeminismo para o centro de suas obras, como se vê em: “E se eu fosse puta” (n-1 edições, 2023), autobiografia sobre suas experiências como trabalhadora sexual, e “Neca + 20 Poemetos Travessos” (O Sexo da Palavra, 2021), que reúne seu monólogo em bajubá, a língua das travestis, e sua produção poética sobre vivências LGBTI+.

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