Um dos documentos mais surpreendentes sobre o surgimento de uma comunidade travesti no Brasil é o artigo “Estudo biográfico dos homossexuais (pederastas passivos) da capital de São Paulo: aspectos da sua atividade social (costumes, hábitos, ‘apelidos’, ‘gíria’)”, publicado no volume II da revista Arquivos de Polícia e Identificação (1939-1939-1940, pp.244-262) por alunos do Instituto de Criminologia do Estado de São Paulo, sob orientação de Edmur de Aguiar Whitaker. Nele, temos acesso a nove entrevistas realizadas com “pederastas passivos”, algumas dessas figuras sendo nitidamente o que hoje chamamos de travestis, apesar da palavra não aparecer no artigo.
E por que acredito nisso? Bom, em primeiro lugar, porque o estudo vem acompanhado de quinze fotografias de tais personagens, fotografias em que elas aparecem muitas das vezes montadas, produzidíssimas, inventando feminilidade a partir de seus próprios corpos. Se hoje em dia, com todas as intervenções corporais proporcionadas pela medicina, roupas do dito gênero oposto ainda são um campo primordial de experimentação, imaginem numa época que desconhecia o silicone industrial, as próteses de silicone e os hormônios sintéticos. Não nos esqueçamos que o artigo 379 do Código Penal de 1890, ainda em vigor nessa época, tratava como crime “disfarçar o sexo, tomando trajos impróprios do seu, e trazê-los publicamente para enganar”.
Em segundo lugar, porque o estudo nos diz que “quasi todos os pederastas estudados respondem por apelidos, tais como ‘Gilda de Abreu’, ‘Damé’, ‘Tabú’, ‘Alfredinho’, ‘Conchita’, ‘Zazá’, ‘Flor do abacate’, ‘Jurema’, ‘Marlene’, ‘Concceta’, ‘Anita – a Verdureira’, ‘Boneca’, ‘Polaca’, ‘Pará’, etc.” (p.260). Nomes que são tratados como meros “apelidos” pelo estudo, mas que representam bem mais: a possibilidade de transformar quem somos por uma simples troca de palavras. Quando se pensa na reinvenção do gênero levada a cabo pelas travestis, a questão do nome é das mais simbólicas.
A título de exemplo, observe-se o que acontece no romance Capitães da Areia (1937), publicado por Jorge Amado um ano antes desse artigo. Num gesto de empatia radical, a voz narrativa só se refere aos protagonistas, crianças em situação de rua, através dos nomes pelos quais são conhecidos (Volta Seca, Sem Pernas, Pirulito, Boa Vida, Pedro Bala, etc.), legitimando os nomes que eles se deram, os nomes pelos quais são conhecidos. No entanto, quando aparece uma travesti na trama, ela será apresentada como um pederasta que se dizia chamar “Mariazinha”. Perceberam as aspas? Estão no original. Mariazinha é o único nome conhecido da personagem, mas o gesto de empatia manifestado no caso das crianças não pode ser estendido a ela.
Algo similar se dá em O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, quando o diretor do internato masculino se depara com uma simples cartinha de amor e se exaspera: “Está em meu poder um papel, monstruoso corpo de delito, assinado por um nome de mulher! Há mulheres no Ateneu, meus senhores!” Sérgio, o narrador em primeira pessoa da obra, explica que “era uma carta do Cândido, assinada Cândida”, mudança suficiente para motivar uma perseguição brutal a quem quer que estivesse direta ou indiretamente envolvido nessa “comédia colegial dos sexos” (no caso, todos os internos).
Voltando ao estudo, outro ponto que me faz ver uma comunidade travesti se constituindo àquela altura é o fato de muitas dessas figuras compartilharem casas. Boa parte das entrevistadas vivia na rua Vitória, 332 (perto da Estação da Luz), “residência de vários pederastas”. O local servia para atenderem clientes, o que indica que o trabalho sexual foi um dos caminhos que encontraram para, num momento tão hostil, viabilizarem suas existências: “Em certos casos vivem exclusivamente do vício: então levantam-se tarde, almoçam, saem a passeio e à noite dirigem-se aos lugares habituais, onde atraem os homens que lhe garantem a subsistência”. Importante não nos esquecermos do papel do trabalho sexual quando pensarmos a história da travestilidade.
Por fim, chamo a atenção para o pequeno glossário que trouxeram no artigo com “os termos de ‘gíria’ comum”, o tataravô do nosso bajubá. Nesse que talvez seja o levantamento mais antigo do gênero, comparecem palavras como “bicha” (pederasta passivo), “bofe” (rapaz moço sem dinheiro), “vou dar um baile” (quando estão com raiva, vão brigar), “chatô” (quarto), “fazer crochet” (passar a mão no pênis de um indivíduo), etc. Algumas dessas palavras seguem vivas na comunidade até hoje, com sentidos similares inclusive.
Conheciam esse estudo? É a primeira vez que consigo botar as mãos nele. Agora imaginem quanto material não há ainda para investigarmos, para conhecermos melhor da nossa própria história.
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