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TRAVESTIS EXPORTARAM A PALAVRA ‘VIADO’ PRO ITALIANO

TRAVESTIS EXPORTARAM A PALAVRA ‘VIADO’ PRO ITALIANO

Foto de Redação josef.santos

Redação josef.santos

3 minutos de leitura

Quem conhece bem o meu monólogo “Neca”, que teve uma primeira versão, curtinha, publicada em Neca + 20 Poemetos Travessos (O Sexo da Palavra, 2021) e sairá expandido ano que vem pela Companhia das Letras, deve se lembrar do momento em que a protagonista diz: “Produto de exportação não é só futebol, nananão, acho que travesti é até mais. Também, belíssimas. É abrir o jornal na Itália e cê já vê ‘i veados’ na primeira página.” Bom, quem não sabe nada de italiano deve ter ficado boiando nessa parte. Se é o seu caso, a coluna de hoje é pra falar um pouquinho sobre o contexto que deu origem a essa passagem, totalmente conectado com a bagunça que as travestis brasileiras têm feito na Itália.

Eu não faço ideia de quem me contou esse babado, mas é fácil confirmar: basta jogar em qualquer buscador as palavras “viado” e “brasiliano” (ou afins) e você vai encontrar inúmeras matérias jornalísticas em sites italianos sobre travestis brasileiras que exercem a prostituição lá. Contudo, o que eu só me dei conta essa semana é que a palavra já se encontra até dicionarizada. Olhem só a definição que o dizionario online Treccani traz:

viado s. m. [dal port. brasiliano veado ⟨vi̯àdħu⟩, che propr. significa «cervo»] (pl. viados, port. brasiliano veados ⟨vi̯àdħus⟩). – Nella lingua corrente, anche in senso spregiativo, travestito o transessuale di origine brasiliana o sudamericana che esercita la prostituzione; oggi, in senso denotativo, vengono usate spesso le locuzioni persona transessuale o persona transgender.1

Não sei ao certo quando a palavra passou a constar nos dicionários, mas ela já consta na minha edição de 1998 do Zingarelli (“travestito o transessuale di origine brasiliana che si prostituisce”, ou seja, travesti ou transexual de origem brasileira que se prostitui), talvez o mais prestigiado dicionário de lá. No entanto, o que eu não sei se vocês estão percebendo é que a definição dessa palavra muda drasticamente quando a confrontamos com as dos dicionários brasileiros. Como exemplo, trago a quarta e última acepção da palavra no Houaiss: “veado (Derivação: sentido figurado [da acp. 1]. Regionalismo: Brasil. Uso: tabuísmo) – Homossexual do sexo masculino.”

A questão é curiosa. No Brasil, a palavra está totalmente associada a gays cisgêneros e, com isso, pouca gente se dá conta de que ela também pode designar travestis (desde que falada por alguém que é travesti ou que, pelo menos, tem intimidade com as gatas, importante frisar). Na Itália, no entanto, como ela foi exportada justamente pelas belíssimas, o seu sentido registrado nos dicionários é somente o de “travestito o transessuale” e sempre associado ao exercício do trabalho sexual. Note-se ainda que é a forma popular que se consagrou lá, “viado”, em vez dessa versão empostada e metida à besta que a ortografia oficial insiste em nos impor como certa, “veado”. Argh!

A palavra atesta a presença massiva de travestis brasileiras na Itália, país para onde muitas de nós migraram e ainda hoje migram buscando uma sociedade que não nos violente tanto. A travesti paraibana Fernanda Farias de Albuquerque, em sua autobiografia Princesa (Nova Fronteira, 1995, p.105), escreve sobre os motivos que a levaram a sair do Brasil, nos anos 1980: “Na Europa não te matam a tiros. Isto era importante, isto bastava. O resto, coisa para turista.” Detalhe: o livro foi escrito originalmente em italiano, no italiano caótico que ela aprendeu nas ruas, todo atravessado pelo português. Por esse motivo, ele é considerado um marco da literatura migrante italiana, tendo até um trecho musicado por um dos maiores cantores italianos, Fabrizio de Andrè.

Termino com duas últimas observações a seu respeito. O título italiano da obra é a palavra do português “Princesa” (apelido da autora) e não, como seria esperado, “Principessa”. Além disso, um trecho seu foi musicado por Fabrizio de Andrè, um dos maiores cantores italianos… o título da canção é o mesmo do livro, mas às vezes aparece grafado como “Prinçesa” para que o pessoal de lá saiba como se pronuncia a palavra (compare, p.ex., o ciao deles e a forma como adaptamos essa expressão ao português, tchau).


  1. viado subst. masc. [do português brasileiro veado ⟨vi̯àdħu⟩, que significa propriamente «cervo»] (pl. viados, port. bras. veados ⟨vi̯àdħus⟩). – Na língua corrente, também em sentido pejorativo, travesti ou transexual de origem brasileira o sul-americana que exerce a prostituição; hoje, em sentido denotativo, usa-se geralmente as locuções pessoa transexual ou pessoa transgênero. ↩︎

Amara Moira é natural de Campinas, mas decidiu morar em São Paulo após se assumir travesti. Ela é doutora em crítica literária pela Unicamp, pesquisadora de gênero e sexualidade e, além disso, uma escritora que traz o putafeminismo para o centro de suas obras, como se vê em: “E se eu fosse puta” (n-1 edições, 2023), autobiografia sobre suas experiências como trabalhadora sexual, e “Neca + 20 Poemetos Travessos” (O Sexo da Palavra, 2021), que reúne seu monólogo em bajubá, a língua das travestis, e sua produção poética sobre vivências LGBTI+.

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