Aposto que um pessoalzinho deve ter ficado confuso com a minha última coluna, sobretudo quem só ali descobriu que travesti e viado podem ser sinônimos. Devem pensar, mas viado não é uma palavra masculina? Sim, e é aí se revela um dos pontos mais intrigantes da travestilidade, a anarquia de gêneros, a incapacidade de se adequar a um binarismo empobrecedor. Quem convive com travestis, certamente já viu alguma de nós chamando a colega por “bicha” ou “viado” e, se a opinião corrente no Brasil, ainda hoje, é a de que essas palavras significam “gay cis”, isso só revela o pouco contato que se tem com a cultura travesti. Desconhecimento que começa a afetar a própria memória da comunidade trans, aliás.
Digo isso porque já vi gente que se diz travesti, dessas novas gerações mais militudas de internet, falando que “nenhuma travesti gosta de ser chamada de bicha e viado”. Gata, do que você tá falando? Com quem você aprendeu o sentido de travesti, hein? Longe de mim querer cagar regra em identidade alheia, mas se você encanou que é justo essa palavra que te define, seria legal pelo menos ir atrás da história dela, conviver com gente que a utiliza há mais tempo.
As ambivalências de gênero
Uma coisa que me dá raiva, p.ex., é quando alguém diz “o travesti”, seja por mero deslize ou porque foi assim que aprendeu, e é tratado como a pessoa mais transfóbica do mundo. Já vi até gente desdenhando de obras incontornáveis LGBTI+ porque aparecia algum “o travesti” em suas páginas, obras com as quais a gente têm muito o que aprender. As novas gerações parecem não fazer ideia de que, até uns 20 anos atrás, essa terminologia era usada pelo próprio movimento organizado de travestis e que, na prostituição das ruas, onde essa cultura efetivamente se forjou, ela é usada ainda hoje. Lógico que já se vê muita mona usando “a travesti”, a maioria talvez, mas daí a concluirmos que o oposto disso é obrigatoriamente transfobia é absurdo.
De qualquer forma, será que travestis que usam “o travesti” ainda não aprenderam que podem usar a palavra no feminino ou será que são pessoas com quem podemos aprender a lidar de forma mais leve com as nossas ambivalências de gênero? Isso me traz à memória uma discussão que tive com uma das militantes mais incríveis que conheci, Janaína Lima. Eu tentava argumentar com ela que travesti era um gênero feminino e ela batia a o pé que isso era uma visão simplista. Daí perguntei: “então, que banheiro você usa?” E ela: “depende… se eu quero fazer pegação, vou no masculino”.
Brincadeiras à parte, o que ela estava dizendo é que a luta era para que travestis pudessem usar o banheiro feminino, não para que fossem obrigadas a isso. Até porque o clima de desconfiança e hostilidade faz com que muitas de nós prefiram usar o masculino mesmo. Lá não vai ter ninguém se dizendo ameaçado, pelo menos… além da fila andar mais rápido.
Fico pensando nos sentidos profundos, inconfessáveis talvez, dessa cobrança militante para que “a travesti” seja a única forma aceitável da expressão. De um lado, a pressão serve para reforçar que travestis não são, como se diz entre nós, “viadinhos de saia” e “gays montados”, o que em alguns momentos pode ser importante (digo “em alguns momentos” porque a obsessão por diferenciar categorias e criar termos cada vez mais precisos não existe no nosso meio… a gente parece conviver bem com a polissemia). Agora eu me pergunto se, junto disso, não há também uma pressão para que as próprias travestis passem a se entender (e se comportar) como uma identidade 100% feminina, uma espécie de subcategoria de “mulher”. Em suma, para que abram mão dessa anarquia de gêneros que é uma de suas características mais notórias e se transformem, finalmente, em irmãs siamesas das “mulheres trans(exuais)”.
Mulheres Trans x Travestis
Eu mesma já defendi, em mais de uma oportunidade (aqui no blog da Fatal Model, inclusive), a necessidade de borrarmos as fronteiras entre o que seria “travesti” e “mulher trans”, mas, quando o fiz tinha como alvo a diferenciação genitalizante e patologizadora que a medicina criou. Ou seja, eu estava defendendo que não faz sentido dividirmos o espectro feminino da comunidade trans entre pessoas que têm aversão ao genital com que nasceram (supostmente as mulheres trans) e pessoas que lidam bem com esse genital (supostamente as travestis). No entanto, apesar de eu rejeitar essa diferenciação e defender uma certa indiferenciação entre essas palavras, é importante perceber que elas adquiriram vida própria no contexto brasileiro e que, nesse contexto, elas têm sim suas diferenças.
“Viado” e “bicha”, p.ex., são sinônimos de “travesti”, não de “mulher trans” e, se começam a surgir casos de mulheres trans que não se ofendem quando chamadas por essas palavras, é porque elas já foram seduzidas pelo lado travesti da força. O mesmo com o bajubá, que é a língua das travestis, nada a ver com a comunidade trans ampla (mais fácil encontrar um gay cis que fala bajubá do que uma mulher trans; homem trans piorou). Aliás, podem esperar umas colunas sobre o bajubá pras próximas semanas.
Amara Moira é natural de Campinas, mas decidiu morar em São Paulo após se assumir travesti. Ela é doutora em crítica literária pela Unicamp, pesquisadora de gênero e sexualidade e, além disso, uma escritora que traz o putafeminismo para o centro de suas obras, como se vê em: “E se eu fosse puta” (n-1 edições, 2023), autobiografia sobre suas experiências como trabalhadora sexual, e “Neca + 20 Poemetos Travessos” (O Sexo da Palavra, 2021), que reúne seu monólogo em bajubá, a língua das travestis, e sua produção poética sobre vivências LGBTI+.
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